Saúde Digestiva



O que é a Neurogastrenterologia?

A neurogastrenterologia é uma das subespecialidades mais recentes da Gastrenterologia, com o seu foco principal nas interações entre o intestino e o cérebro, e que considera a saúde intestinal o segredo do bem-estar físico e mental.

Mais recentemente, acrescentaram ao eixo intestino-cérebro a ciência do microbioma intestinal e revelaram que a dieta, a atividade física, a qualidade do sono e a gestão do stresse, podem ser determinantes na estabilidade de todo o sistema composto pelo microbioma, o intestino e o cérebro.

 

Embora os sintomas dos pacientes – do âmbito da neurogastreneterologia – não tenham qualquer relação com malignidade, estes pacientes vivem, muitas vezes, aterrorizados com esta hipótese, não se sentem seguros e acabam por ter uma qualidade de vida deficiente e é por isso mesmo que merecem ser esclarecidos e tratados com esta ciência em constante evolução, que já é uma verdadeira revolução na medicina.

Mais ainda, e frequentemente, as queixas digestivas ocorrem em simultâneo com manifestações do foro psíquico e neurológico, o que é mais uma chamada de atenção para este tipo específico de patologia.

O eixo intestino-cérebro, como tudo indica, depende do contributo do microbioma intestinal para que se torne funcional e regulável, mas também torna este eixo muito vulnerável, o que significa muito dependente de muitos fatores externos e internos, como por exemplo a dieta, a atividade física, o sono e os níveis de stresse.

Por isso mesmo, quando nos propomos lidar com estas situações clínicas que pertencem ao espetro da neurogastrenterologia, temos que ter em conta estes múltiplos fatores que devem ser abordados em conjunto.

 

Assim sendo, o sucesso terapêutico terá que passar, inevitavelmente, pela normalização do estilo de vida saudável e pela adequação de comportamentos a cada pessoa.

Desde há 30 anos que os gastrenterologistas têm agrupado os sintomas digestivos de causa inexplicável por critérios epidemiológicos (que têm sido por várias vezes atualizados) e a que têm dado o nome de Perturbações Funcionais Digestivas ou Gastrointestinais.

Desde 2016 estes síndromes passaram a denominar-se Distúrbios da Interação Intestino-Cérebro, também um sinal de um novo paradigma clínico.

 

Há quanto tempo apareceu a Neurogastrenterologia como modalidade médica?

Até há 40 anos muitos pacientes que apresentavam sintomas digestivos eram interpretados como tendo apenas alterações motoras gastrointestinais e eram, muitas vezes, desvalorizados – também porque sofriam de perturbações psicológicas).

Com o decorrer do tempo, os médicos e investigadores foram percebendo que era cada vez mais evidente o papel regulador do cérebro sobre o intestino, tendo surgido uma corrente a favor da existência de uma interação real entre o cérebro e o intestino.

 

Alguns anos depois, veio a constatar-se que essa interação também se dava no sentido contrário, ou seja, entre o intestino e o cérebro.

 

Tendo em conta a existência deste eixo bidirecional, acabou por ser aceite a ideia de que existiria um subtipo de neurologia dentro da especialidade de gastrenterologia.

A publicação do livro “O segundo cérebro”, em 1998, ainda reforçou mais este novo conceito. 

E foi assim que, no final dos anos 90 do século passado, esta subespecialidade conquistou identidade própria e autonomia para que fosse reconhecida na prática médica, embora ainda, não totalmente divulgada.

 

Quais são as maiores diferenças entre a Neurogastrenterologia e a Gastrenterologia geral na abordagem destas disrupções do eixo intestino-cérebro?

Há duas diferenças fundamentais: a primeira está relacionada com o modelo da medicina que é aplicado em cada uma delas.

  • Na neurogastrenterologia o modelo é essencialmente biopsicossocial, ou seja, a prática médica assenta numa unidade corpo-mente, integrando todos os eventos da vida e história pessoal desde a infância.
  • Ao contrário, na gastrenterologia geral, o modelo usado é tendencialmente biomédico – a prática clínica é baseada nas evidências das queixas mais recentes e nos aspetos orgânicos através da objetividade dos sinais e sintomas.

A segunda diferença diz respeito aos recursos e procedimentos que são usados:

o neurogastrenterologista procura na comunicação médico-paciente e na confiança que consegue estabelecer, o fio condutor para o diagnóstico e também para a indispensável aderência terapêutica para atingir esses objetivos.

Aplica diversas metodologias diagnósticas, limitadas a poucos exames complementares, e para o tratamento valoriza os recursos pessoais do paciente que são reforçados com recomendações sobre vários aspetos sobre nutrição e psicoeducação, por exemplo.

O gastrenterologista geral, habitualmente, depende dos mais variados exames complementares para identificar alterações orgânicas e, tendencialmente, valoriza a terapêutica medicamentosa e o envio a outras especialidades complementares.

 

Quais são os fundamentos da Neurogastrenterologia?

Temos mesmo dois cérebros e um deles é intestinal?

Para responder a esta questão, que envolve um sistema tão complexo (hoje conhecido como sistema-microbiota-intestino-cérebro) e com várias vias de sinalização em constante comunicação, temos de lembrar algumas particularidades do intestino e dos dois cérebro,  algumas delas verdadeiramente surpreendentes!

 

O Intestino, o maior órgão endócrino, tem uma área de superfície aplanada que ronda os 32 metros quadrados ( a pele tem apenas 2 m2). 

Este orgão é o epicentro do sistema imunitário, porque concentra 70% de toda a imunidade do corpo humano, e também é o reservatório de 95% da serotonina, a hormona da felicidade, da regulação da fome e dos movimentos intestinais.

 

A parede do intestino, que tem uma espessura de apenas 2 a 4 mm, tem seu no interior um sofisticado sistema nervoso, que se chama entérico, conhecido como segundo cérebro, composto por 200 a 600 milhões de neurónios e outras tantas células de suporte.

O intestino também é habitado por um órgão, do tamanho de uma manga grande, que já teve tantos nomes como: órgão virtual ou esquecido ou órgão vital.
Atualmente, este órgão chama-se microbioma intestinal e reside, sobretudo, no interior do intestino grosso, onde tem a maior densidade microbiana que existe no planeta, habitando na escuridão e praticamente sem oxigénio.

Este órgão tão complexo é formado por uma enorme comunidade de microrganismos com mais de 100 biliões de seres únicos, de vários tipos, sendo só as bactérias cerca de 39 biliões (um número ligeiramente superior aos 30 biliões de células do nosso corpo). 

Pesa entre 200 a 500 gramas e se for devidamente alimentado produz cerca de 40% das substâncias que circulam no nosso sangue e entre todos os sistemas do nosso corpo. Encontra-se na fronteira entre o mundo exterior e o mundo interior do nosso corpo, impedido de passar para o nosso meio interior por um finíssimo revestimento composto por uma camada de muco e um complexo sistema de células da imunidade a que chamamos chama barreia intestinal.

Esta barreia de proteção está repleta de milhões de sensores ou sondas de sensibilidade que captam uma incalculável quantidade de informações que servem para regular o funcionamento local do intestino – o segundo cérebro.

Tudo o que acontece no interior do intestino, ou na sua complexa parede, também é constantemente relatado ao cérebro através do sistema nervoso periférico, muito na dependência de um nervo, que tem o nome de nervo vago, e também de muitos milhares de moléculas diferentes que só o microbioma sabe fabricar e enviar, caso esteja devidamente bem tratado.

Apenas 1 % dos nossos genes são estritamente humanos, tendo em conta que 99% são microbianos, ou seja, uma diferença entre 23 000 genes que herdamos dos nossos pais, e 3 a 10 milhões de genes que se encontram no microbioma humano.

 

Qual o papel da Neurogastrenterologia na saúde e bem-estar em geral?

Quando falamos no sistema digestivo pensamos imediatamente no papel mecânico e químico envolvido nos processos da digestão e absorção de nutrientes, no entanto sabemos que a conexão cérebro-intestino também influencia as nossas emoções e o bem-estar geral.

O que a ciência tem vindo a mostrar, nos últimos anos, é a sua participação central na regulação de tantas outras funções vitais, como são as funções mentais (dos sentimentos às capacidades cognitivas) quer seja quando está em causa a saúde ou qualquer estado de doença, como por exemplo a obesidade, a diabetes ou a depressão.

Por isso mesmo já é uma realidade que esta ciência, que esteve até agora centrada na gastrenterologia, rapidamente se vai alargar a muitas outras especialidades médicas, como é o caso da psiquiatria, da neurologia e tantas outras.

 

Quais são os pacientes que devem recorrer às consultas de Neurogastrenterologia?

Não resta qualquer dúvida sobre a elevada prevalência de pacientes com queixas que necessitarão das potencialidades da neurogastrenterologia, tanto quanto 40% da população, sofrerá de um ou mais destes sintomas, em alguma fase da sua vida.

No entanto, se considerarmos a intensidade dos sintomas e a capacidade dos pacientes de controlar as suas queixas, apenas uma pequena percentagem destes pacientes necessitarão de cuidados tão diferenciados. Muitos pacientes terão sempre bons cuidados fornecidos pelo seu médico de família, que saberá encaminhar as situações mais complexas para a especialidade de neurogastrenterologia.

Nestas situações de disfunção da interação intestino-cérebro, devem pesar os danos causados pela experiência que o paciente tem com os seus sintomas (como lida com eles) e as implicações no bem-estar e na qualidade de vida pessoal e social.

O complexo de sintomas a que me estou a referir são, frequentemente, muito perturbadores ao longo do tempo (até pela sua repetição), pois são sintomas que têm tendência a reaparecer ao longo da vida, só por si um pesadelo.

Refiro-me-nos a sintomas como a azia, indigestão, distensão e dores abdominais, alterações intestinais e defecatórias, e uma das mais frequentes e difíceis de controlar: o síndrome do intestino irritável – pode ler mais sobre o tema aqui.

Uma das frases mais badaladas da medicina e proferida há mais de 2000 anos é: “todas as doenças começam no intestino”… E a grande novidade é que agora estamos verdadeiramente a saber porquê.

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