Saúde Digestiva



Doenças do Pâncreas – uma perspectiva actual

As doenças do pâncreas são temidas pela população geral pelo crescente mediatismo atribuído ao cancro do pâncreas, genericamente associado a mau prognóstico. Mas importa esclarecer que existem outros tipos de tumores do pâncreas, que são mais comuns do que o cancro do pâncreas e que apresentam um prognóstico francamente mais favorável.

Importa ainda transmitir uma mensagem de esperança relativamente ao “cancro do pâncreas”, denominado adenocarcinoma ductal do pâncreas, cuja sobrevida tem aumentado de forma consistente nos últimos 5 anos. Na última década assistimos a grandes progressos na investigação molecular do cancro do pâncreas, com a identificação de biomarcadores com potencial relevância diagnóstica e prognóstica e com a reformulação de novos alvos terapêuticos. Os esquemas de quimioterapia disponíveis são cada vez mais eficazes, permitindo que uma proporção crescente de doentes com cancro do pâncreas localmente avançado apresente redução da massa tumoral, podendo posteriormente vir a beneficiar da cirurgia. É possível que a história natural e o prognóstico desta doença sejam profundamente alterados nos próximos anos.

Mas vamos focar-nos no conhecimento de outras doenças pancreáticas, menos mediáticas do que o cancro do pâncreas, cuja incidência tem aumentado significativamente nos últimos anos. Merecem especial destaque os quistos do pâncreas e os chamados tumores neuroendócrinos do pâncreas, que são frequentemente assintomáticos e diagnosticados de forma incidental em exames de imagem – são os chamados “incidentalomas” pancreáticos. Sabemos que o aumento significativo da incidência destas lesões é essencialmente devido à maior utilização de exames de imagem, principalmente da tomografia computorizada (TAC) e da ressonância magnética (RM), que tiveram uma expansão significativa na prática clínica nos últimos 40 anos.

O que é um quisto do pâncreas? Qual a sua prevalência?
Um quisto é um nódulo com conteúdo líquido (deriva do grego kystis, que significa “saco”). Na maioria dos casos resulta da proliferação de células que produzem líquido, denominando-se neoplasia quística. Existem dois grandes grupos de neoplasias quísticas do pâncreas, que se distinguem pelo tipo de células que revestem o quisto e pelas características do líquido que produzem:

1. Os quistos mucinosos (os mais comuns, caracterizados pela presença de muco e que apresentam risco de malignidade variável);

2. Os quistos serosos (que contêm um líquido seroso e que não apresentam risco de evolução para malignidade).

Devemos salientar que há algumas décadas pouco se sabia sobre os quistos do pâncreas. A distinção entre quistos mucinosos e serosos só foi reconhecida há 40 anos. Hoje sabemos que os quistos do pâncreas são muito prevalentes, principalmente nas faixas etárias mais avançadas, afetando ¼ dos indivíduos com mais de 80 anos.

O que fazer perante o diagnóstico de um quisto pancreático?
A abordagem clínica de um quisto pancreático deverá ser individualizada, dependendo da presença ou não de sintomas e das características do quisto. A abordagem de um quisto implica em primeira instância bom senso, uma vez que frequentemente correspondem a lesões pequenas, assintomáticas e inofensivas em doentes idosos. Para caracterizar um quisto pancreático (por exemplo, detectado numa ecografia ou numa TAC), o exame indicado em primeira linha é a ressonância magnética. Em doentes jovens e nos quistos de maior dimensão (> 2cm) torna-se pertinente determinar com precisão a natureza do quisto e, para este fim, o exame mais indicado será a ecoendoscopia, um exame que conjuga a endoscopia com a ecografia de alta definição, permitindo realizar uma biopsia dirigida. Esta biopsia com análise do líquido e das células do quisto permite definir com maior precisão a natureza do quisto, bem como a presença de algumas características de risco de malignidade.

Qual a probabilidade de um quisto progredir para cancro do pâncreas? Quando está indicada cirurgia?
A probabilidade de evolução para malignidade depende em primeiro lugar do tipo do quisto, (colocando-se este risco apenas no casos dos quistos mucinosos) e de características morfológicas e moleculares do quisto. Hoje em dia está indicada cirurgia quando o quisto condiciona sintomas ou quando se reconhecem características de maior risco de malignidade. Atualmente temos ferramentas cada vez mais precisas para esta caracterização, tanto em termos de imagem, como na avaliação do conteúdo do quisto, de forma a predizer a sua história natural. Neste campo a ecoendoscopia e a biopsia guiada por ecoendoscopia assumem um papel central.

Quais os principais tipos de tumores sólidos do pâncreas?
O termo “cancro do pâncreas” corresponde ao adenocarcinoma ductal do pâncreas, um tumor com origem nos ductos do pâncreas (canais excretores da glândula). Conforme tem sido mediatizado, o adenocarcinoma ductal do pâncreas apresenta um comportamento biológico agressivo, com um prognóstico habitualmente reservado, uma vez que a disseminação tumoral é frequente no momento do diagnóstico. Mas existem outros tipos de tumores do pâncreas, com origem nas células endócrinas do pâncreas (que correspondem às células que produzem hormonas, como a insulina). Estes tumores são conhecidos como “tumores neuroendócrinos do pâncreas” e a maioria destes tumores apresenta um prognóstico favorável.

Com que frequência surgem os tumores neuroendócrinos do pâncreas? Existem grupos de risco?
Tal como os quistos do pâncreas, os tumores neuroendócrinos do pâncreas correspondem a um dos “icebergs da Medicina”. Isto porque a maioria dos casos são assintomáticos e só estarão diagnosticados uma pequena proporção dos casos. A parte escondida do iceberg são os casos não diagnosticados, em que a doença é assintomática e oculta. A incidência dos tumores neuroendócrinos do pâncreas tem aumentado rapidamente, tendo triplicado nos últimos 20 anos, essencialmente à custa dos casos diagnosticados em exames de imagem numa fase assintomática. Apesar da parte oculta do iceberg estar a diminuir com a crescente utilização de exames de imagem na prática clínica, sabe-se que a proporção de casos não diagnosticados é muito superior à proporção de casos diagnosticados. Estudos em séries de autópsias documentaram a presença de pequenos tumores neuroendócrinos do pâncreas (a maioria microscópicos) em até 10% da população estudada. É uma prevalência impressionante, que denota que muitos destes tumores são indolentes e inofensivos, sendo fundamental adoptar estratégias para estratificar o risco de progressão. Os tumores neuroendócrinos do pâncreas podem surgir em qualquer idade (até em jovens), mas são mais frequentes na 5ª e 6ª décadas de vida. Afetam ambos os sexos e não há fatores de risco ambientais bem estabelecidos.

Quais são as manifestações habituais dos tumores neuroendócrinos pancreáticos? Como poderão ser diagnosticados?
Nos países desenvolvidos, os tumores neuroendócrinos pancreáticos são cada vez mais diagnosticados numa fase assintomática, como achados incidentais em exames de imagem. Apesar destes tumores surgirem de células endócrinas produtoras de hormonas, a maioria é não funcionante e apenas uma minoria produz hormonas em excesso. Os exames mais precisos para diagnosticar estes tumores são a TAC, a RM e a ecoendoscopia.
A ecoendoscopia corresponde à forma mais confortável e segura para biopsar estes tumores, que para além do diagnóstico definitivo, permite caracterizar o grau de proliferação celular do tumor (o chamado índice proliferativo), um dado com extrema importância na decisão terapêutica.

Qual é o prognóstico dos tumores neuroendócrinos pancreáticos?
O prognóstico depende do tamanho do tumor e da fase da doença (estádio da doença) e de fatores associados ao comportamento biológico do tumor (determinados na biopsia tumoral). Estes tumores apresentam um comportamento biológico muito variável, que não depende apenas do tamanho do tumor ou da fase da doença. Mesmo tumores disseminados (metastizados) podem ter uma evolução indolente e até um prognóstico favorável. Devemos continuar a investigar formas de estratificar o risco de progressão destes tumores, de forma a selecionarmos para tratamento os que apresentam maior risco de progressão. É fundamental ser criterioso na decisão em remover cirurgicamente estes tumores, pois a cirurgia pancreática também tem um potencial significativo de complicações.

Dr. Miguel Bispo
Médico Gastrenterologista na Fundação Champalimaud, Lisboa.
Em representação da Direção do Clube Português de Pâncreas (CPP), secção especializada da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia (SPG).

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