Saúde Digestiva



Vamos falar sobre indigestão/dispepsia?

Afinal, o que é dispepsia?

Dispepsia é um termo médico que descreve um conjunto de sintomas digestivos crónicos ou recorrentes centrados na parte superior do abdómen. 

Ela é frequentemente referida como indigestão e não é uma doença específica, mas sim um complexo sintomático que pode ser causado por diversas condições subjacentes. 

Os sintomas da dispepsia podem variar de leves a graves e, muitas vezes, são experimentados como desconforto ou dor no estômago (especificamente na área do epigástrio, logo acima do umbigo), saciedade precoce durante uma refeição, sensação de enfartamento após a refeição.

Vamos falar sobre dispepsia?

 

Porquê que é importante distinguir este tipo de sintomas?

É importante para o médico que estes sintomas sejam bem descritos porque pode mudar a abordagem inicial, principalmente no que diz respeito ao tratamento. Em doentes com ardor ou dor epigástrica, o tratamento com medicação que reduz o ácido do estômago é geralmente mais eficaz do que nos doentes com saciedade precoce ou enfartamento pós-prandial. 

Nestes casos, a abordagem inicial pode incluir um medicamento pró-cinético, ou seja, um medicamento que promova o esvaziamento do conteúdo do estômago. 

 

Quando é que é recomendável procurar um médico a propósito destes sintomas?

De facto, num recente estudo epidemiológico da Rome Foundation, 7,2% da população tem sintomas de dispepsia que entram nos critérios de doença (mais do que 3 episódios por semana desde há 3 meses, tendo começado 6 meses antes), com variações inter-continentais, e sabemos que afecta mais as mulheres do que os homens. 

É importante falar com o seu médico quando os sintomas têm impacto no seu dia-a-dia, seja pela sua gravidade, seja pela sua frequência. 

Assim, como já mencionado, se os sintomas duram há mais de 6 meses e acontecem 3 vezes por semana nos últimos 3 meses, deverá falar com o seu médico. 

Se houver outros sintomas, como perda de peso, náuseas ou vómitos, história de cancro digestivo na família, alterações dos hábitos intestinais, ou factores como idade superior a 50 anos, aconselhamos procurar o médico mais cedo.

 

Naturalmente, o médico vai procurar compreender qual a origem da dispepsia. Quais são as causas mais frequentes?

 A dispepsia pode ser classificada em dois tipos principais, baseando-se na presença ou ausência de uma causa orgânica identificável:

  •  Dispepsia Funcional: É o tipo mais comum, em que os exames não revelam uma causa orgânica específica para os sintomas. Ou seja, não há uma doença subjacente identificável como responsável pelos sintomas. Estima-se que uma grande maioria (acima de 70% ) dos casos de dispepsia se enquadra nesta categoria.
  •  Dispepsia Orgânica: Os sintomas são atribuídos a uma condição subjacente ou doença identificável, como:
    – Úlceras pépticas (úlceras no estômago ou duodeno)
    – Infecção por Helicobacter pylori
    – Doença celíaca
    – Cancro gástrico (uma causa menos comum)
    – Outras condições gastrointestinais, como a doença celíaca ou a pancreatite.

 

Como é que se chega à conclusão da causa da dispepsia? 

O diagnóstico da dispepsia geralmente começa com uma avaliação médica detalhada, que inclui o histórico médico do paciente e um exame físico. 

Testes adicionais (como endoscopia digestiva alta, testes de respiração para Helicobacter pylori, exames de sangue, entre outros) podem ser indicados para excluir causas orgânicas. 

Na maioria das vezes, o tratamento inicial inclui reduzir a quantidade de ácido no estômago com medicamentos que são chamados de “inibidores da bomba de protões”, como o omeprazol, lansoprazol, esomeprazol. 

Outros tratamentos como antibióticos para erradicação do H. pylori, medicamentos que ajudem o estômago a esvaziar, por exemplo, também pode ajudar.

 

No caso da dispepsia funcional, o tratamento foca no alívio dos sintomas e pode envolver mudanças no estilo de vida ou dieta, além da utilização de medicamentos sintomáticos. Esta abordagem integrada é essencial, porque na nossa experiência, raramente existe um “comprimido mágico”, que resolve o problema da dispepsia completamente.

Vale ressaltar a importância de procurar orientação médica para um diagnóstico correto e tratamento adequado, especialmente porque alguns sintomas da dispepsia podem se sobrepor aos de outras condições que requerem intervenção específica, como é o caso de pedras na vesícula biliar, úlceras gástricas, doença celíca (intolerância ao glúten), problemas do pâncreas, entre outros. 

 

É obrigatório fazer endoscopia? 

Não é obrigatório, mas caso não haja resposta ao tratamento inicial, é muito frequente que esta seja feita. Nos casos em que temos outros sintomas, aos quais chamamos sintomas de alarme, como emagrecimento, outros sintomas como dificuldade em engolir, suspeita de perda de sangue, anemia, história familiar de cancro, é normal que o médico avance logo com este exame. 

Um estudo recente da Rome Foundation, mostra que 83% dos doentes com sintomas de dispepsia têm uma endoscopia completamente normal.

 

Mas se a endoscopia for normal, é indicado fazer mais exames, como a ecografia ou TAC? 

Em doentes sem factores de alarme, como perda de peso, outros sintomas como alteração do trânsito intestinal, problemas de deglutição, sinais de hemorragia digestiva, ou anemia, fazer estes exames não traz muitas respostas. Isto porque na sua maioria, os exames são normais. Num grupo de doentes com endoscopia digestiva alta normal (n=260), a ecografia abdominal foi normal na maioria, e alguns dos achados encontrados não estavam associados aos problemas de má-digestão. 

 

Como é que a gastrite e a dispepsia/ má digestão se relacionam? 

A gastrite é um diagnóstico feito por endoscopia, ou então por análises das amostras colhidas durante uma endoscopia. Gastrite significa que há inflamação da camada interna do estômago. Existem vários factores que contribuem para a gastrite, o mais frequente é a infecção por Helicobacter pylori, uso crónico de medicamentos, em que os mais responsáveis são os anti-inflamatórios não esteróides como o ibuprofeno, álcool, stress, e doenças auto-imunes. 

É normal que haja uma sobreposição entre doentes com gastrite e com problemas de má digestão, mas do grupo de doentes com dispepsia a quem foram analisadas amostras do estômago,  menos de metade inflamação do estomago ou duodeno, e apenas 0.8% tinha cancro gástrico. 

 

A dispepsia é muito diferente do refluxo gastro-esofágico? 

Não, na verdade existe uma sobreposição de sintomas (o ardor na zona do estômago) e uma sobreposição de doenças. Isto também é verdade noutras doenças do eixo cérebro-intestino, como o síndrome do intestino irritável, ou então outros sintomas como náuseas, vómitos, eructações ou arrotos que são difíceis de controlar.

 

Falamos sobre eixo cérebro-intestino – começa tudo nessa ligação? 

Esta ligação é absolutamente fundamental para a nossa saúde digestiva – pode ler mais sobre esta ligação aqui.

Esta é uma área fascinante, sobre a qual temos aprendido muitos nos últimos 15 anos, e ainda há muito por descobrir e aprender. 

Percebemos que muitos factores que contribuem para estas doenças, como a dispepsia, são resultantes da desregulação do eixo cérebro intestino. Assim, para tratar estas doenças, é importante olhar para esta ligação de diferentes perspectivas.

 

Existem pessoas com mais predisposição a ter esta desregulações do eixo cérebro-intestino que se manifesta como dispepsia? 

Sim, existem alguns factores de risco para estas doenças. 

Sabemos que pessoas que têm doenças como depressão, perturbação da ansiedade têm mais predisposição, mas também pessoas que tenham tido gastroenterites, determinados tratamentos como antibióticos (muitos medicamentos têm como efeito secundário dispepsia!), tabagismo, estilo de vida sedentário e uma alimentação pobre em fibras e rica em gorduras animais. 

Esta doença é mais frequente nas mulheres de meia idade, e estamos a prendar mais sobre a relevância das alterações hormonais femininas nesta fase e o seu impacto no sistema digestivo. Outras doenças, como intolerâncias, asma, alergias, também são mais prevalentes em doentes com dispepsia e começou-se a aperceber da presença de inflamação celular em doentes com dispepsia.

Estes factos reforçam ainda mais a importância do estilo de vida e dos factores externos ao sistema digestivo que impactam grandemente o seu funcionamento, mas há um factor muito importante -– a dieta.

 

A dieta poderá causar dispepsia, mas será que também pode tratar dispepsia? 

A dieta é um fator muito importante, até porque nalguns casos a dieta poderá ser a causa para o sintoma, como acontece em doentes com intolerância à lactose, ou ao glúten. 

Nestes casos é muito linear, mas na maioria dos casos, é na verdade, mais difícil de identificar uma dieta que ajude toda a gente. Naturalmente, alguns conselhos gerais como diminuir o teor de gordura, principalmente de gorduras saturadas, ou aumentar o consumo de fibras e proteínas não animais, beneficiam todos nós – com e sem dispepsia! – mas notamos que, tal como o que acontece no refluxo, alguns alimentos podem desencadear sintomas – tal como os citrinos, o álcool, alguns alimentos com casca como cebolas, pimentos, lentilhas  – mas na verdade a melhor avaliação é feita pela pessoa que sofre dos sintomas, que muitas vezes reconhece alimentos “proibidos” 

Recentemente, uma dieta chamada FODMAPS, pobre em hidratos de carbono fermentáveis, oligossacáridos,  dissacáridos, oligossacáridos, monossacáridos e poliois, já muito estudada no contexto de síndrome do intestino irritável, tem sido usada com algum sucesso em doentes com dispepsia. É uma dieta que exige alguma energia, mas tem a vantagem de ser uma dieta que contempla a re-introdução dos alimentos e permite à pessoa perceber como reage individualmente a cada um deles. 

 

Porque é que nalguns casos os doentes são tratados com um anti-depressivo? 

Tal como o que aconteceu com a aspirina, inicialmente usada para tratar febres, mas que depois passou também a ser usada para tratar ataques cardíacos, aconteceu algo semelhante com algumas classes de anti-depressivo. Percebeu-se que as pessoas tratadas tinham menos dor e este mecanismo parece ser mediado pela redução da activação entre o tubo digestivo e o cérebro. 

Ao diminuir esta activação, os sintomas diminuem num grupo considerável de doentes. 

 

A dispepsia é uma doença crónica? 

Um estudo de Leuven mostrou ao fim de 5 anos de seguimento de 253 doentes, os sintomas desapareceram ou melhoraram em cerca de 17 e 38% (55%), mas que infelizmente, para 45% dos doentes os sintomas não melhoraram ou até pioraram. Por isso, para quase metade dos doentes, trata-se de uma doença crónica, que pode ter momentos de agudização. 

É fundamental que os doentes identifiquem os sintomas, reconheçam padrões, e tenham a capacidade de ser pro-activos na sua gestão.

Educar, consciencializar e tranquilizar é uma parte importante do trabalho do médico neste seguimento.

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